Eva Rap Diva: “Angola é a casa pela qual tenho de lutar, Portugal é a casa onde tenho paz”
Soltou as suas primeiras rimas de improviso ali pelos lados da linha de Sintra, era muito nova. No ouvido levava os Black Company, os Da Weasel ou o Boss AC. Diz, por isso, ser uma filha do hip-hop tuga.
Em 2009 muda-se para Angola. Primeiro para Lobito, em Benguela, dois anos depois para L
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Eva Rap Diva atuou no ano passado em Lisboa no festival Vodafone Mexefest e este ano integrou a Guerrilha Cor de Rosa, liderada pela amiga de há vários anos Capicua, no Red Bull Music Culture Clash. Com “Eva”, trabalho agora editado em Portugal, regressa para conquistar, com a sua lírica e atitude, o país que também é seu.
“Não gosto do termo rap no feminino se for de uma forma pejorativa, mas se for no sentido de união e em prol das mulheres no rap por mim não há problema”
Li que não gostas do cunho “rapper no feminino”, é verdade? Porquê?
Não tenho problemas com esse cunho. Nós não devemos separar homens e mulheres no hip-hop, nem no rap, nem em nada na vida. Mas sabemos que quando existem minorias, e essas minorias de alguma forma são menos privilegiadas, é bom que elas estejam unidas para lutarem pelos seus direitos, pelo seu espaço e pela sua afirmação. Não gosto do termo rap no feminino se for de uma forma pejorativa, mas se for no sentido de união e em prol das mulheres no rap por mim não há problema.
Há essa união na música ou no rap cantado por mulheres?
Depende de que território estiver a falar. Acho que existem poucas mulheres…
Saltamos então para a pergunta seguinte, que era essa…
Então, unir o pouco é complicado. Mas até é mais do que isso. Falar em união pode não ser representativo. Ainda. No mercado português, que conheço bem, sinto-me bastante à vontade com as poucas artistas que fazem rap em Portugal. A Capicua é uma das minhas melhores amigas. De vida, não é só da música. Já há uns bons anos, talvez mais de dez. Em Angola também existem algumas artistas que são unidas. Outras menos, porque o hip-hop também tem dessas coisas, aquela cena do beef… Mas [no geral] não estamos em fase de estar umas contra as outras, mas sim unidas. Zelo, sempre que posso, por isso.
Tu consideras-te uma filha do hip-hop tuga.
Sou! Fui parida e nascida pelo hip-hop tuga como artista.
Tu começas a soltar as primeiras rimas muito nova. Tinhas o quê, 12 anos?
Sim, sim.
Onde, com quem e através de que influências?
Eu comecei a ouvir rap na margem sul, na Arrentela, onde vivia na altura. Black Company, Boss AC… Bebi muito também do rap da margem sul, Chullage e por aí adiante. Só que aos 11/12 anos mudei-me para Lisboa, para a linha de Sintra. Benfica, vá. E começo a estudar na Amadora, onde, na minha escola, havia muitos MCs e rodas de freestyle. Na margem sul também havia, mas onde me afirmei e decidi que era mesmo isto o que queria e onde senti aquela energia do hip-hop e do rap foi na Amadora. Antes já escrevia e já brincava às rimas com o meu irmão. Irmão/primo, o Rúben. Um ano mais novo que eu. Ao longo dos anos fui participando em alguns concertos, sempre a fazer freestyle. Mais tarde, participei no álbum do Ryhmman, o primeiro álbum de rap que saiu na Guiné-Bissau e foi gravado em Portugal. Depois participei na reedição do “Praticamente” do Sam The Kid, na Incendiários Mixtape e noutra do DJ Cruzfader. Mas tudo sem grande periodicidade no que toca a gravações ou [preocupação] em fazer obra discográfica. A primeira coisa que editei [“Rainha Ginga Do Rap”] saiu em 2014, em Angola, e felizmente foi muito bem recebida. Depois continuei, até hoje e, graças a Deus, com tudo a correr muito bem.
“Eva”. Porquê este título para o álbum?
Não fiz nenhuma música dedicada à minha avó [Eva], porque ainda não consegui. Infelizmente. Dedico-lhe coisas todos os dias, falo com ela a toda a hora, mas ainda não consegui ter a grandiosidade a nível de composição para lhe fazer uma música. Ainda não consegui expor numa música tudo o que lhe tenho a dizer. Mas a verdade é que a minha primeira obra discográfica chamou-se “Rainha Ginga Do Rap” e houve um dia em que ela perguntou porque é que dei o nome da Rainha Ginga ao disco, e quando é que daria o dela… E na altura pensei que talvez tivesse sido melhor dar o nome da minha avó, que é uma pessoa para mim muito especial. Por isso, neste, decidi fazê-lo. Eva, pela minha avó, mas também por minha causa, porque [nele] fiz tudo à minha maneira, dentro do que achava que tinha de fazer, sem medos do que as pessoas fossem pensar se falasse sobre isto ou aquilo ou optasse por uma ou outra sonoridade.
Antes de pegar nessa Eva “sem medos”, como é a relação com a tua avó? São muito próximas, já deu para perceber.
Sou a neta mais velha, entre sete netos, e fui a primeira menina. Ela é uma cota assim muito para a frente. Foi muito rigorosa na educação dos filhos, mas quando chegou na altura de ser avó disse: ‘já vos eduquei a vocês, aos meus netos não tenho de educar’. Então, em casa costumamos brincar e dizer que a avó é do gangue. Porquê? Porque, desde miúdos, sempre que havia alguma coisa podíamos falar com ela e expor tudo. Estava a par de todos os segredos e de todas as maracutaias que fizéssemos. Jamais contaria, pelo contrário. No máximo iria defender-nos e encobrir-nos. Porque ela é do gangue. Eu levo a avó para o Bairro Alto e para concertos. Vai comigo ao sushi ou ao indiano e sei qual é o vinho que ela gosta. Tem WhatsApp, Skype e Facebook. E tem setenta e tal anos. A nossa relação é assim, cúmplice. Quando há algum problema, sou a primeira pessoa a quem ela liga e vice-versa. Sou a neta galinha. Quando há algum problema com a minha avó, o mundo para.
“Angola é, para mim, um desafio diário”
“Sem medos” e sem filtros? Dizes o que pensas?
Tento, pelo menos. É muito difícil dizer o que se pensa, é muito mais fácil dizer o que pensamos que os outros pensam…
Ou o que pensamos que os outros querem ouvir…
Ou o que os outros pensam que nós devemos dizer, né [não é]? Isto é um trabalho diário e todos os dias temos de saber qual é o nosso eixo e não sair dali. Porque o mundo parece que nos puxa sempre para os outros caminhos. Mas sim, tento sempre dizer aquilo que penso e ser fiel àquilo que sou, que gosto e que acho correto.
Este álbum tem alguns convidados, queres apresentá-los?
Tenho o Landrick, na música “Final Feliz” e que foi um grande sucesso; o Gari Sinedima, na “Um Assobio Meu”, um artista de world music angolano e que tem ganhado um espaço muito bom no mercado; a Selda, que é minha prima e para além de cantar e ter uma grande voz é compositora e produtora; e outros artistas mais conhecidos dentro do panorama angolano, uma vez que foi lá que trabalhei o álbum. Na produção tive o Detergente, que produziu metade do álbum mas também foi responsável por outros instrumentais. Na direção artística Vui Vui, um grande artista e MC, porque precisava de alguém com a maturidade suficiente para me alertar quando estivesse a fugir do objetivo e me dizer para ter calma.
De Lisboa para Angola. Hoje, onde é que te sentes em casa?
Essa é das perguntas mais difíceis que já me fizeram nos últimos tempos. Não sei, na verdade. Em Angola sinto que é a casa pela qual tenho de lutar, em Portugal sinto que é a casa onde tenho paz. Quando estou cá parece que tudo funciona bem e se desenrola de uma forma normal. Sei que para um português comum, que viva cá, isso possa suscitar um: ‘não, mas cá também há muitos problemas’. Mas a esse digo: ‘nunca esteve na realidade angolana, é por isso que reclama’. Em Angola sinto que ainda temos muitas coisas por melhorar, mas não quer dizer que não goste desse desafio. Angola é, para mim, um desafio diário. Quando pensamos que já passou uma determinada etapa, percebemos que não. Temos de voltar outra vez e levantar o castelo de areia. Angola é muito difícil por causa disso. Formei-me como pessoa em Portugal. Se não tivesse crescido em Portugal e não tivesse tido esta aprendizagem, não teria a capacidade de enfrentar Angola como enfrento. Então, é mesmo como diz a música [do Roberto Leal], né: ’em Portugal sou brasileiro, no Brasil sou português’. É mais ou menos isso. Mas as duas, Portugal e Angola, são duas casas e duas pátrias que amo muito. Vibro tanto com o hino português como com o hino angolano e quando falam mal de Portugal fico passada, e o mesmo acontece ao contrário. Quando é para defender uma causa relacionada com Portugal, estou lá; mas estou também para uma angolana. São mesmo dois amores para uma só pessoa. É possível!
Angola passou, no último ano, por grandes transformações políticas. Que diferenças já sentes?
A maior diferença que existe em Angola neste momento — apesar de não poder afirmar que sinto que tenha a minha liberdade de expressão aceite de forma plena, porque não tenho… — é a questão da liberdade e do respeito pela opinião. Não sei se era culpa do anterior executivo, mas a realidade é que este novo Presidente conseguiu transmitir uma ideia às pessoas e aos órgãos públicos que há que ter a liberdade de falar, de escolher, de dar opinião e de decidir. Antes as pessoas parecia que estavam muito apertadas e agora já toda a gente dá uma opinião: ‘não, isto devia ser assim ou assado’ ou ‘ai a lei do repatriamento de capitais…’. Antes era muito complicado. Eu já o fazia, mas quase ninguém o fazia. Hoje acho muito engraçado ver publicações de pessoas famosas que antes ligavam para mim a dizer: ‘não podes publicar isso’ ou ‘não podes dizer isso numa entrevista’. E hoje em dia já os vejo a fazer publicações e a dar opiniões semelhantes às que eu dava há um ano. Esta, para mim, é a mudança mais relevante. A nível estrutural vão ser precisos muitos anos, mas a nível económico, que nós estivemos a passar uma fase muito complicada, parece-me que está a ser feito um trabalho para dar a volta. Fala-se muito na luta contra a corrupção… Só o facto de se falar nestas coisas já é uma mudança. Mas, assim de forma material, ainda estamos num processo. Então, não posso falar de grandes mudanças porque é um processo que se está a desenrolar.
“Sinto que mais do que palavras, as pessoas em Angola precisam de exemplos de coragem. (…) Ninguém trava o vento com a mão. “
Algumas vez sentiste represálias por…
Já. Não precisas de terminar a pergunta.
E quais foram, se é que podes falar sobre elas?
Aconteceu. Ou acontece, vá. O facto de estar, por exemplo, privada de dar a minha opinião num órgão [de comunicação social] por causa de uma opinião que dei. Mas é algo sobre o qual não quero falar muito porque quero demonstrar… Ou melhor, só quero falar depois de demonstrar o que quero. É uma coisa na qual eu não falo. Não por medo, porque não o tenho. Acho que as pessoas que agem assim são mais pequenas do que eu. As únicas pessoas que considero inferiores a mim são as que não respeitam a liberdade dos outros: quem acha que está acima da justiça, de Deus ou dos direitos dos outros. E como acho que sou superior a essas pessoas, não lhes posso dar importância falando delas. Vou usá-las para mostrar, amanhã, a importância de sermos firmes naquilo que acreditamos. Vou continuar, pacificamente, a fazer o meu trabalho e daqui a uns tempos vão ver o que vou demonstrar. Sinto que mais do que palavras, as pessoas em Angola precisam de exemplos de coragem. As pessoas vivem num medo muito grande e só com conversas não vamos lá. Como costumo dizer: ninguém trava o vento com a mão. E vou provar isso. Aliás, acho que já sou a prova disso. Se se fecha uma porta, contornamos o edifício e entramos pela porta de trás. E entramos na mesma.
De que forma é que já influenciaste uma nova geração de raparigas que veem em ti uma influência no mundo do rap e no hip-hop? Em alguma circunstância alguma veio falar contigo e disse “fiz isto graças a ti”?
Tenho, tenho. Mesmo em Portugal. Muitas! No final do Red Bull Culture Clash [onde esteve com a Guerrilha Cor de Rosa], cada uma das meninas foi para o seu destino. Eu saí mais cedo porque tinha algumas pessoas amigas à minha espera, como a Tamin, e encontrei um grupo de raparigas, algumas que já cantam e outras que estão a tentar dar os primeiros passos [na música], e elas sabiam as minhas letras e as minhas músicas. Estavam muito felizes por estar ali e ainda lhes dei uma aula de freestyle, que elas pensavam ser impossível, mas que é algo muito simples. Em Angola tenho isso, e é normal. Mas cá, mesmo não estando ainda tão presente no mercado português, muitas artistas de rap quando vão procurar referências deparam-se também comigo.
Normalmente pergunta-se como é que os artistas veem o estado atual do rap ou do hip-hop. Eu quero olhar em frente, como é que gostavas de o ver no futuro?
O estado atual está bom. No futuro, gostava que isto se mantivesse e não passasse só por uma moda. Há dez anos, acredito que o sonho do Boss AC, que já estava bem posicionado, era que nós estivéssemos como estamos agora no que toca à dimensão e à projeção do trabalho dos artistas de rap. Agora, o que desejo é que no futuro este se mantenha, aliás, que aumente, haja ainda mais abertura e que se veja um artista de rap nos Globos de Ouro a competir pela melhor canção do ano e a ganhar, por exemplo.
Antes falaste da Tamin. Quem não a conhecia de Cais Sodré Funk Connection, certamente guardou o seu nome da última edição do Festival da Canção. Ela tem uma importância grande na tua carreira. É de onde vem o nome Eva Rap Diva?
Foi a Tamin que me chamou assim pela primeira vez. Num evento de hip-hop que agora não me recordo onde foi, mas acho que foi em Santos. Eu subi ao palco para dar freestyle e tal, mas estava assim muito molezinha. E a Tamin, que sempre foi muito exigente comigo, tranca assim a cara e faz um ar do tipo ‘então, rebenta lá com isso rápido?’. Aponta para o relógio, do género ‘estás a demorar muito tempo para estragar isto’. Deu-me assim um ralhete lá debaixo e que me pôs em sentido. E como aquilo eram batalhas, arrumei quem tinha para arrumar. Quando desço do palco ela diz-me: ‘tu não és uma rapper, tu és uma Rap Diva’. E ficou.
Estás de partida para Angola, mas voltas dentro de umas semanas. A primeira data é já no Rock in Rio Lisboa e terá contornos um pouco diferentes. O que vais cantar?
Fiz um dos hinos do Rock in Rio, então estarei lá para o cantar. Serão anunciadas mais datas, mas para já apenas é conhecida a do festival MEO Sudoeste.