Rock in Rio: Para os Muse o rock ainda é um objeto de mudança
Era possível perceber, ao longo do dia, exatamente aquilo que levou uma vasta multidão ao primeiro dia desta nova edição do Rock in Rio Lisboa. Estava estampado nas t-shirts que envergavam, quase todas elas idênticas: pretas, logótipo branco, letra em caixa alta – MUSE –, como o símbolo de uma contracultura à qual poucos têm direito de entrada. Dezoito anos após a sua estreia por terras lusas (no Festival do Ermal; alguém ainda se lembrará?), os Muse continuam a granjear um apoio considerável por cá, enchendo quase todos os espaços por onde passam e levando os fãs a loucuras várias, ainda que neste Rock in Rio o público não tenha mostrado muita da efusividade a que se costuma assistir num espetáculo rock. Não houve mosh, ou crowdsurf, ou as cantorias habituais. Houve as luzinhas gentilmente cedidas pela EDP a criar uma maré nas filas da frente e, claro, as selfies e os registos vídeo para o Instagram.
Tenhamos em mente que este também não é – apesar do nome, mas isso são outras discussões – um festival talhado para ambientes rock. Porque é mais do que um festival de música; é, por um lado, uma feira popular onde famílias se passeiam alegremente, visitando cada cantinho e cada atração diferente sem perder muito tempo em cada uma (exceto quando o assunto é brindes) e, por outro, uma feira de vaidades por onde desfilam caras conhecidas e credenciadas cuja presença tem o objetivo único de povoar as redes sociais com registos posteriores. Não é rock nesse sentido cru, místico, inviolável, revolucionário. É um rock de sentido abrangente; significa o que quer que se queira que signifique.
Para os Muse, o rock é ainda um objeto de mudança. Esse sentimento está bem presente sobretudo nos seus últimos álbuns, “The Resistance” (2009), “The 2nd Law” (2012) e “Drones” (2015), trabalhos onde a política fala mais alto e cuja relevância passa pela imposição de uma mensagem muito específica: a de que os grandes senhores que controlam o mundo nos estão a lixar à grande e à francesa. O que há em palavras de ordem não existe, no entanto, na música – que cresceu, que se tornou (ainda) mais espampanante, que passou a incorporar outras linguagens que não a da tríade guitarra-baixo-bateria. Houve por exemplo espaço, no alinhamento de hoje, para algo tão inenarrável quanto “The 2nd Law: Unsustainable”, um tema que parece ter saído dos piores sonhos oleíferos de um Skrillex.
Se na última passagem dos Muse por Portugal (MEO Arena, 2016) o espetáculo cénico girava sobretudo à volta dos drones que iam sobrevoando as cabeças dos presentes – até porque era esse o mote do disco que ali apresentaram –, para este concerto no Rock in Rio os britânicos parecem ter decidido voltar às bases. Claro, houve luz, cor, momentos de maior showoff e os confettis e serpentinas que a ocasião exige, mas durante grande parte do tempo aquilo a que se assistiu foi a uma banda coesa, disposta de forma muito junta, que se limitou a apresentar a sua música sem artifícios de maior. Ganhou esta última e ganharam sobretudo os temas que fazem as delícias dos fãs da velha guarda, que começaram a acompanhar os Muse através de álbuns como “Origin of Symmetry”, “Absolution”, onde a atitude de punk se aliava a desvarios que se podem considerar de ordem mais “progressiva” (algo que seria impensável, por exemplo, em 1977…).
Mais crus, mas ainda na luta. Mal termina a nova ‘Thought Contagion’, canção lançada em fevereiro deste ano, vemos Matt Bellamy de punho erguido, como que para nos lembrar de que este não é um concerto rock para que nos alienemos; é-o para que pensemos e passemos a reger as nossas vidas de uma forma mais justa, mais empática, para que discutamos e debatamos os problemas que nos afligem e às pessoas que, do outro lado do mundo, também sofrem, quiçá até mais que nós. O sentimento de luta é universal e a música dos Muse poderia ser uma das suas muitas bandas-sonoras. Arriscaríamos mesmo dizer que, apesar do exibicionismo eletrónico dos seus últimos temas, estamos perante três dos poucos artistas de intervenção que ainda restam no mainstream…
Que a luta não se sobreponha, no entanto, à magia de um espetáculo ao vivo – os Muse são grandes, sabem-no, e é com essas regras que jogam. Bellamy corre pela passadeira, debita riffs de um blues rolante como quem acende um cigarro, arrisca um “boa noite, Lisboa!” em bom português e surge nos ecrãs e em palco, ora com um esgar perfeitamente punk, ora com as poses mais rockstar que se possam imaginar. Em “Supermassive Black Hole” chegou mesmo a fazer sexo oral à sua guitarra, para gáudio dos presentes. Em “Madness”, colocou um par de óculos escuros onde as palavras cantadas iam surgindo como num sonho. E, em “Starlight”, desce para junto do público e faz com que milhares de pessoas cantem o refrão em uníssono, em desejo: I just wanted to hold you in my arms… Até que o concerto termina com a inevitável ‘Knights of Cydonia’, uma das melhores canções rock escritas no novo milénio. Já vimos melhor por pare dos Muse? Já. Foi aceitável? Foi. Isso é sempre.
Quem também muito fez por trazer um espetáculo de trajeitos rockstar foi Diogo Piçarra, que ao final da tarde se apresentou perante alguns fãs (sobretudo do sexo feminino e menores de idade) acérrimos. O músico português mostrou que sabe de cor e salteado tudo aquilo que é preciso fazer para se tornar viral; lançou-se em direção ao público num crowdsurf curtinho, agradeceu a sua presença no festival e, ao entrar, fez-se rodear por um grupo de dançarinos vestidos de verde-camuflado e com bandeiras ao alto num momento que não destoaria num concerto neofolk. Pelo meio, cantou ‘Até Ao Fim’, chamou Ana Vitória e Marco Rodrigues ao palco e ainda dedicou ‘Homem do Leme’ ao falecido Zé Pedro.
Só lhe faltou fazer como os Bastille e dedicar um tema a Donald Trump, já depois de os britânicos terem recuperado os anos 90 através de um mashup de ‘Rhythm of the Night’ com ‘Rhythm is a Dancer’, dois dos grandes temas dessa coisa a que se achou por bem chamar eurodance – música pop pura, sem outras vontades que não a de fazer dançar. Antes disso, o vocalista Dan Smith mostrou alguma atitude e humor ao desculpar-se, com sotaque, pelo seu “português de merda”. Infelizmente, a palavra estampada na sua t-shirt resume bem aquilo que foi o seu concerto: “bodega”. Algo que as Haim não foram, naquele que foi um concerto há muito aguardado por uma boa fatia dos festivaleiros mais jovens, que se deleitaram na pop das irmãs norte-americanas em em temas como ‘Days Are Gone’, e que o guineense Kimi Djabaté também não foi, entrando no palco montado na chamada Rock Street de muletas e sentando-se em frente ao seu balafón, instrumento semelhante ao xilofone e com o qual ia sacando melodias a ferver no groove de uma África dançante. Uma África que, como sempre, está cheia de boa música.
Este ano, e ao contrário das edições anteriores, as portas do Rock in Rio abriram mais cedo, por volta do meio-dia, já com algumas dezenas de festivaleiros a fazer fila para entrar e vislumbrar, de perto, alguns dos novos palcos existentes – sobretudo o do Worten Gaming e o do Super Bock Digital Stage, que oferece aos presentes não (mais) concertos mas sim espetáculos de dança, rap improvisado, stand-up comedy e, até, o que quer que seja que alguns YouTubers façam ao vivo. Neste domingo, a música voltará a passar pelo Rock in Rio através de nomes como Agir, Anitta, Demi Lovato e Bruno Mars.